sábado, 1 de fevereiro de 2014

As viagens de minha mãe eram sempre épocas tristes. Não sei explicar o porquê, mas meu pai sempre me pareceu um homem muito dado à solidão. Parecia saído de algum desses tantos livros que eu tenho esquecidos na estante: o jogo de xadrez não terminado, Proust aberto na escrivaninha de mogno, o cachimbo recém apagado, uma sombra forte num canto escuro. Meu pai escutava Villa Lobos pra me levar pra faculdade. Lembro de como ele era fascinado com As Quatro Estações de Vivaldi e a gente ficava juntos tentando descobrir qual estação era qual nas diferentes partes da música.
Minha mãe era toda a alegria e a dramaticidade colocadas em uma pessoa só. Ela sempre ensinava a gente a fazer qualquer coisa além do que era esperado pra nós. Enquanto meu pai gostava de fugir das pessoas, minha mãe gostava de chama-las pra jantar. Ela nos ensinava sobre amizade e nos incentivava a ser ativos, ligados, espertos. Ela tinha fé, não só em Deus, mas nas coisas todas, no mundo, nas pessoas. Minha mãe lia Quintana pelas manhãs enquanto regava a horta orgânica que ela tanto gostava. Ela cultivava orquídeas e sempre me comprava livros de poesia. Mas também me cobrava postura e me dizia que era importante estar bem vestida. 
Quando eu ainda era muito menina, meus pais me deram um livro muito grande que se chama “Antologia de Poesia Brasileira Para Crianças”. Foi um livro que mudou o meu destino, que despertou em mim alguma coisa que eu não sei dizer. Meu pai tinha uma voz imponente e que parecia pertencer a um Deus e vivia me recitando o poema da flor que era levada pela corrente. Minha mãe não sabia recitar poesias como meu pai. Mas foi ela quem um dia me chamou num canto e leu o poema da estrela tão alta e tão fria e me perguntou se eu tinha entendido todas as coisas implícitas que a estrela representava e eu disse que não. Minha mãe me contou que na poesia nem tudo é o que parece ser e que na grande maioria das vezes não o é. Eu gostava de ouvir a poesia na voz do meu pai, mas foi minha mãe quem me ensinou o verdadeiro valor das palavras.
Eu era uma mistura deles dois. Tinha a sede da vida que tinha a minha mãe e a inquietante vontade de permanecer imóvel do meu pai. Não sabia como conseguia conciliar isso dentro de mim, mas conseguia entender perfeitamente porque eles estavam juntos e eram tão bonitos há tanto tempo.
Não que eu pensasse muito sobre a morte, mas era difícil imaginar que se tudo ocorresse bem eles desapareceriam antes de mim. Era difícil também crescer e descobrir que papai e mamãe não eram infalíveis; que eles existiam de uma forma abusivamente concreta, sujeitos a erros e fracassos. E que eu também não podia simplesmente fazer dezoito anos e fugir, porque eles se importavam comigo e era de verdade e não era nenhum pouco certo ignorar isso.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014


Ganhei A Viagem de presente de natal do meu irmão. Comecei o livro depois de aceitar que eu definitivamente não queria terminar O Processo porque simplesmente não era a hora de estar envolvida em assuntos kafkianos. Precisava de um pouco de paz literária.
Abandonei O Processo e peguei A Viagem em mãos. Parecia muito inofensivo. É uma das capas mais bonitas da estante, uns tantos tons de rosa com o nome de Virginia em alto relevo se destacando.
O livro começa como poucos livros sabem começar. Do primeiro capítulo, já me escapuliram algumas dezenas de lágrimas. Sim, ela sabia que precisava voltar pra tudo aquilo, mas no momento tinha de chorar.

A maneira de Virginia escrever é realmente especial. Muitas vezes me peguei dentro de um sonho, imaginando cada feição, gesto e detalhe. O mundo real, por vezes, me parecia fugir e voltar a ele era como emergir de algo muito, muito profundo. Muitas vezes, as palavras e a história pareciam submersas, dando voltas e voltas entorno de algo que não parecia valer a pena - mas que no final se mostrava importante, porque demonstrava a superficialidade à que se sujeitam todos ali.
É um livro sobre as relações que não ultrapassam a camada da frivolidade. E sobre como o amor é capaz de sempre transcender no que diz respeito à isso. O amor representa sobretudo a imersão, a quebra do que é sempre superficial e tangente.
Virginia grita o livro inteiro: somos soberbamente fúteis e estamos sós. Rachel e Hewet representam aqueles que conseguiram ir além.
É uma valsa incrível até que eles realmente consigam se despir diante um do outro, colocando em palavras o que realmente sentiam. Mas é então que a mágica acontece. De perto, são absurdamente simplórios e comuns, sujeitos aos mesmos vícios e superficialidades de todos os outros que os rodeiam, mas é justamente a simplicidade que lhes agrega a leveza e a beleza de poderem ser quem realmente são. Estão nús e não são absurdamente belos; mas a beleza ali consiste apenas no fato de estarem nús.
Ao longo da trama Rachel quase nunca está realmente presente, realmente dizendo algo. Há nela, quase sempre, a sensação de não se estar falando sobre as coisas que realmente importam. Há sempre algo que a separa dos outros. É o que eu chamo de camada da frivolidade. É o que acontece em quase noventa por cento das situações cotidianas. Estamos meramente representando papéis. Reconstruindo diálogos que quase sempre já foram ditos. Trocando de máscaras conforme pede a situação. Quase nunca somos quem somos. 
E conforme o livro avança, percebe-se também que o que somos nem sempre é tão digno.
E o amor assume a função de tornar digno o que à primeira vista é meramente vil. Só o amor de Hewet é capaz de fazer com que Rachel, apesar do mau gosto literário e da beleza discreta, se torne única no mundo
Em um livro repleto de diálogos, que retrata sobretudo a vida social de ingleses em uma viagem à América do Sul no início do século XX, Hewet quer escrever um romance sobre o silêncio, sobre o que as pessoas não dizem. E Virginia demonstra que só o amor é capaz de falar sobre o implícito, sobre o que é despido de máscaras e trejeitos pré-definidos.
Percebeu com grande sensação de conforto como era fácil falar com Hewet, sem aqueles espinhos ou arestas que rasgam a superfície de algumas relações.
O livro se encerra, ao menos na minha mente, com uma pergunta cruel: mas, afinal, de que vale o amor? 
O final inesperado de A Viagem coloca em contraponto tudo aquilo que foi construído. A vida sempre continua, independente de todos os senões. Há algo maior que nos impulsiona a sempre seguir em frente. Algo que é maior que o amor, que a compaixão e que a morte. As banalidades suplantam o poder do amor. Apesar de tudo, precisamos comer, crescer e nos relacionar. Navegar é preciso, é sempre preciso. Não nos é permitido parar. A gente continuava, claro, a gente continuava...
A capa rosa de A Viagem nada ou muito pouco dizia sobre ele. 
É um livro sobre os silêncios, sobretudo sobre os silêncios absolutos, que nos são ditos e repetidos todos os dias. É um livro sobre o silêncio das ausências, mas também sobre o silêncio do que é presente e real, diário.
E é sempre bom saber que você não é o único do mundo a se sentir assimNo meio do silêncio, as palavras de Virginia me abraçaram. Quase um grito.

sábado, 28 de dezembro de 2013

Hoje entrou uma menina na livraria me perguntando sobre John Green. Isso é o que noventa e nove vírgula nove por cento das meninas fazem quando entram lá. Às vezes ficam indecisas entre Sparks, Green e o novo livro da Demi e é só isso. O que aconteceu é que, diferentemente dos noventa e nove vírgula nove por cento das meninas ela não se deteve ali. Escorregou pra estante de literatura internacional e ficou ali por uns bons 30 minutos. Fui perguntar se ela queria alguma ajuda e a gente acabou engatando um papo frenético. Trocamos um monte de referências, compartilhamos um monte de coisa em comum. E o mais legal é que indiquei 'Admirável Mundo Novo' e ela levou. Junto, é claro, com o 'A Culpa É das Estrelas'.
Dia desses me peguei pensando sobre as amizades. É que, de um bom tempo pra cá, a minha capacidade de fazer novos Amigos - assim, com maiúscula - simplesmente desapareceu. Compartilhei dessa opinião com algumas pessoas que concordaram veementemente com a minha explanação. Consegui explicar isso de duas maneiras básicas. A primeira é mais óbvia e provavelmente seja a verdadeira razão de tudo e explica o fato da minha ausência de novas amizades porque, por algum motivo, eu tenha ficado mais chata, menos sociável. A segunda razão explica tal fenômeno porque, de acordo com o tempo e com o aprofundamento das antigas amizades, as novas sempre pareçam de certa forma supérfluas
Com o tempo, minhas verdadeiras amizades - as que sobreviveram ao tempo e à distância - foram se tornando antigas. Com o passar dos anos, as ações foram se tornando mais previsíveis, os gostos ficando mais claros; os silêncios passam mais desapercebidos, as palavras ditas às pressas, às vezes nem mesmo precisam ser compreendidas - são meras repetições. Nem precisamos mais das conversas diárias ou semanais. Somos amigos porque somos amigos há tanto tempo e porque nos queremos bem, se possível e fácil fosse, até mesmo perto, até mesmo agora. São amizades consolidadas, calcadas na realidade, testadas em mil diferentes modos. Já quase não exigem nenhuma cena. Quase nenhum segredo é terrível demais pra quem já se conhece tão bem. Quase nenhuma falha é grande demais pra algo que existe, forte e belo, há tanto tempo.
Plantar algo novo num terreno encharcado de raízes exige muito - é preciso carinho, é preciso cuidado, tudo tem que ser feito milimetricamente. Talvez, com o tempo, conforme o fardo vá se tornando mais pesado, a gente tenha que ser cada vez mais seletivo com o que vai resolver carregar por aí; talvez então, só entre o que for mesmo necessário, o que for absurdamente lindo. 
E por onde andará o lindo? 
Imagino que eu e a menina que entrou hoje na livraria poderíamos ser mesmo boas amigas. Afinal, eu também li John Green. E por que não? O que é que falta? Por que é que ela foi embora pra, provavelmente nunca mais?
Mas apesar de tudo gosto de acreditar que sempre há de ter alguém que vai distrair nosso silêncio - nossos abismos. Mesmo que seja em algum lugar perdido. Mesmo que você só possa sentir isso pelo telefone, numa ligação bêbada que dura quatro horas. Sempre vai existir alguém pra quem você quer pedir um abraço, uma palavra qualquer.
Encontrar tudo isso é mesmo mais difícil quando você se muda pra uma cidade em que é, basicamente, um alienígena e não conhece nada nem ninguém. Mas também gosto de acreditar que se você não tiver medo do novo, o novo não vai ter medo de você.
(...) e nem vou pensar se me chamar pra fugir contigo outra vez.
Quanto a mim, estou limpando meus terrenos. É que quando o novo chegar, tudo precisa estar pronto. Porque, afinal, vocês sabem bem, repito isso toda hora: eu tenho muita pressa...
Em termos de retrospectivas, eu queria escrever alguma coisa sobre os filme, os livros e as músicas que marcaram meu ano. Cheguei até a propor pra uma amiga que a gente fizesse um top 5 das músicas que marcaram o ano, mas por algum motivo acabou não rolando. E foi assim que eu parei pra pensar sobre as cinco músicas do meu ano e acabei chegando a mais uma terrível conclusão.
As cinco músicas do meu ano estão todas incluídas em um artista só. E elas sequer são cinco, mas algumas dezenas. As cinco músicas do meu ano brevemente  se resumem em um nome: Bon Iver. 
Não gosto de declarar meu amor pelas coisas assim, sem saber nada sobre elas. Acabei de jogar no google e descobrir pela wikipedia que For Emma, Forever Ago, albúm que finalmente me inspirou a escrever esse texto, "é o primeiro álbum lançado pela banda estadunidense de indie folk Bon Iver. Ele foi lançado por conta própria em 2007". Mas, apesar de sequer saber que tipo de indie ou de folk era o dele, o fato é que Bon Iver - e Justin Vernon, que pra mim são só different names for the same thing -, pelo menos até aqui, muitas vezes me deixou sem palavras. 
Foi um ano longo, cheio de reviravoltas. Ano de ouvir Alt-J no caminho da faculdade, MV Bill na academia, Angus&Julia Stone nos quatrocentos e tantos quilômetros indo e voltando pra casa. Ano de escutar The Kooks quando a coisa ficava feia demais e eu precisava de ânimo; e de também ouvir Clair de Lune todo santo dia, pra me lembrar do que é bonito. Ano de escutar Ella Fitzgerald e Chico Buarque na faxina de sábado a tarde e de colocar Fitzsimmons no loop eterno da vida, porque não existe nada mais doce.
Mas se for pra colocar numa lista que vai de 1 a 5, as músicas que realmente definiram dois-mil-e-treze, Bon Iver domina toda ela. Talvez nem tanto pelo número de plays dados, nem pelos momentos em que ela estava tocando quando fiz algo mais ou menos memorável (nesse sentido, o troféu vai pra Sweet Nothing, da Florence). 
Bon Iver define meu ano pela maneira absurda como me toca a alma independente do momento, do dia, ou da quantidade de tempo que eu passe escutando ele nesse misto de cantar-sussurar. Bon Iver lidera todas as minhas preferências - e olha que eu já cheguei até ao absurdo de dizer que a música dele resume o meu gosto musical - porque, muitas vezes até aqui, conseguiu me roubar as palavras; conseguiu traduzir, sem tantos esforços, o que eu sentia. Bon Iver é o top five, porque muitas vezes, chorar não é o bastante. Tem dias assim, como esse aqui, que ter alguém te contando histórias cantadas sobre lobos e cidades que você ainda não conhece, é mais importante do que qualquer coisa. 
Bon Iver leva esse troféu porque, ademais de todas as qualidades especificamente musicais, no meio de todo o caos, tantas vezes foi colo.
E pra fechar fiz, de coração partido, uma seleção de cinco músicas dele sem sequer saber que bendito critério adotei (a aleatoriedade, talvez). Só pra ilustrar.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Quando fui fazer a entrevista pra trabalhar na Empório Cultural a moça que me entrevistou disse uma coisa que me inquietou e que depois se mostrou mesmo verdade: comprar livros é uma coisa, vendê-los é outra completamente diferente.
Ficar seis horas de pé, volta e meia presa em enigmas que não fazem sentido nenhum, como o porquê da gramatura da folha de uma versão do livro do R. R. Martin ser diferente da outra, realmente não é o que eu elegeria a melhor coisa do mundo.
Descobri, em poucos dias, que sapato nenhum vai curar a dorzinha que eu sinto toda noite por ter ficado o dia todo em pé, subindo e descendo escadas. Não foi preciso muito tempo pra eu perceber que ninguém é obrigado a saber que ninguém é obrigado a saber de tudo, mas que a gentileza é a maior coisa que a gente pode sair fazendo aleatoriamente por aí por um mundo melhor.
E pensar negativamente sobre tudo isso me faz perceber também que, apesar de ter valido muito a pena, nos meus tempos de Jornalismo, acordar às 7 da manhã pra ter uma aula às 8 horas de mais ou menos 15 minutos e depois ter que esperar até duas e cinquenta pra ter outra aula também não era lá aquelas coisas. E que coisa nenhuma é totalmente boa e digna e impecável.
Mas o que mais me impressiona é a forma como as coisas rapidamente mudam de perspectiva. Hoje fui falar com a minha mãe sobre o que pretendo fazer com o meu dinheiro e ela me disse assim, meio de lado, enquanto fazia a farofa de peru: "você sempre quis, por que não vai pra França?". Foi um susto perceber que, sim, eu poderia mesmo ir pra França se me organizasse direitinho. E que, a partir daqui, a minha vida tinha se tornado uma outra coisa, uma coisa nova. 
Eu já tinha reparado que não ia mais precisar pedir o dinheiro do ônibus pro meu pai e que eu podia comprar a calça que eu bem entendesse desde que ela coubesse dentro do meu orçamento, mas ainda não tinha olhado pras proporções do que eu podia fazer com o meu dinheiro. E foi bem legal saber que, finalmente, vou poder tirar alguns dos meus sonhos da gaveta e poder torná-los um tiquinho mais real.
É, mãe, acho que França agora não, mas só porque tenho algumas coisas mais urgentes e palpáveis a fazer. Passar uma semana em Campo Grande pra rever algumas pessoas é uma delas. Visitar os meus avós e de quebra aceitar o convite de um amigo pra conhecer São Paulo é uma outra.
E meu coração sorri quando penso em todas essas coisas.
14h10
Todo rompimento é um choque e nada é mesmo muito fácil. Mas é a velha história do crepúsculo. Às vezes de um lado é só escuridão, mas se você vira a cabeça cento e oitenta graus, ainda existe sol, ainda existe luz. Pessoa, muito sabido, já tinha resumido isso há umas dezenas de anos atrás: "Deus ao mar o perigo e o abismo deu/ Mas nele é que espelhou o céu".
Não é engraçado, assim, tão de repente, as coisas fazerem tanto sentido? As coisas entraram mesmo em órbita ou foi só eu?

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Você desiste da faculdade, resolve reformular a vida toda, repensar tudo e dar o próximo passo. E, tá, vamos lá, ok... Mas, é... Qual é o próximo passo?
Fiquei estagnada nessa questão um bom tempo. Olhando pra dentro e pra fora de mim e  só enxergando a bagunça toda que eu fui fazendo ao longo desse ano. Não conseguia me achar em nada, em ninguém. Deus virado de costas com uma plaquinha pregada na bunda: foda-se tu. A solidão estampada em todas as minhas máscaras.
E aí veio o boom. E abençoados sejam os boom, e que sempre hajam os boom. BOOM, minha filha, você existe, vá fazer algo com isso. O peido de deus, que balança a plaquinha e anuncia a tempestade. Deus peida e o mundo gira. E eu fui embora de mim.
Pedi uma resposta pro Universo: help me to find a way. Assim, em inglês, porque soa mais impessoal e incisivo. Como boa filha da minha mãe, saí, comprei uma melissa lin-da, fiz a sobrancelha, cortei o cabelo e. E descobri, no meio do caminho, que Deus é paulista e estava sussurrando no meu ouvido, daquele jeito como só os deuses que são paulistas sabem:
- Minha filha, vai trabalhar.

E, de repente, eu estava ali, cercada de livros e de gente que gosta de livros e que compra livros de presente pra dar pros amigos e que deixa aquele livro que ele veio buscar porque lembra que o filho queria aquele outro, mas que custa o dobro do preço. 
Bonito mesmo é quando chega um cara travestido de bobo, uma menina do lado, alianças no dedo:
- Moça, quero um livro de roteiro de viagens.
E na imensidão de prateleiras, enquanto corro pra pedir ajuda mais uma vez, fico imaginando os dois rodando o mundo a la Murad Osmann.
Entra e sai de gente de todo jeito. Olinhos curiosos em busca de algo que prometa um novo mundo. A verdade é que dentro de livrarias, todo mundo é lindo demais. Até eu. Mais perdida que tudo, sem saber encontrar sequer o mais best dos best sellers. Às vezes ainda meio confusa entre a linha que me separa entre o dentro e o fora, obrigando alguém a dizer, meio brincando, meio dizendo a verdade, "pára de ler livrinho, tem cliente pra atender".
É, virei vendedora de livros. No Empório Cultural, livraria aqui de Bauru que abriga o 'Café Fernando Pessoa', assim, de uma hora pra outra, sem nem perceber. 

Eu podia ter tentado manter o meu orgulho de princesa da classe média criada a Sucrilhos e Yakult. Podia ter ficado mais um dia enfiada nas minhas leituras pessimistas e nas bobeiras ditas instantaneamente pelo facebook. Ter vontade mesmo de ir trabalhar, mas sempre diluindo essa ideia na lembrança do discurso dos meus professores do colégio militar, que reduzia os vendedores de shopping center em gente-que-não-deu-certo, pra sempre estagnada nessa ideia absurda da dignidade de nunca sujar as mãos, de sempre ter tudo fácil e pronto ou senão nem ter. 
É, eu podia ter chamado meu papai e pedido, mais uma vez, dois e setenta pro busão. Mas resolvi me achar muito boba e enfrentar o mundo inteiro pra tentar algo novo.
Tô viva. E foi bem bonito até. 
E finalmente consigo associar que, bom, esse é um novo ano e esse, felizmente, é um novo lugar.
Recomecemos, pois.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O objetivo principal das palavras é o desnudar. A palavra só cumpre satisfatoriamente sua função quando consegue preencher sem brechas o que antes era, se não vazio, desconhecimento.
Por si só, palavras não representam nada, mas quando assumem seu verdadeiro papel são como legendas de um filme iraniano (ninguém aqui fala iraniano, certo?), traduzindo e tornando claro o que a princípio poderia ser apenas compreendido em superfície, por associação.
Como quando a gente diz saudade e a palavra brota do fundo do fundo das coisas e vai carregando consigo tudo o que vê pela frente. Todo mundo sente saudade, todo mundo sabe bem o que é. Mas vai lá definir isso. Tenta só definir uma saudade profunda sem citar a palavra em si. É muito difícil carregar a complexidade do que saudade quer dizer, sem citar a palavra. 
E esse é o grande valor implícito da linguagem: essa capacidade de compreender o que a gente sente e não sabe dizer.
E a despeito da moral e dos bons costumes o que a gente gosta mesmo é de ficar nú, despidos das nossas máscaras e tentativas. Ser só dentro, ser só alma. Tem nada mais bonito que alguém te conhecer por completo, desvirado, do avesso (mesmo que depois, em algum momento, a gente tenha que tornar a se vestir). E isso é tão digno quando acontece através das palavras. Meu querido Bukowski resumiu isso tudo que eu disse com uma ternura digna de nota: "quando a verdade de outra pessoa fecha com a sua, e parece que aquilo foi escrito só para você, é maravilhoso."
É, Buk, é maravilhoso não estar sozinho. É maravilhoso imaginar que Caio estava certo e que nesse deserto de almas também desertas algumas almas especiais estão por aí, prontas pra colisão. Não existe nada mais restaurador do que Bianca me dizendo que o que sentimos não é em vão. Nada que aqueça mais a sibéria que maltrata dentro do peito do que os poemas do Diego.